Para não destoar de um dia surreal, quando cheguei ao Palácio de Belém e me indicaram a entrada pelo Museu da Presidência, ninguém me perguntou nada ou pediu identificação. Achei estranho, mas, francamente, o que é que é estranho num dia assim? Lá me passaram o saco naquela coisa para ver das bombas e mandaram-me "subir a rampinha". Quando lá cheguei acima, à sala de chão preto e branco que conhecemos das TV e onde as câmaras e jornalistas se acumulam, uma senhora sorridente perguntou-me: "É familiar?" Confusa, respondi: "Não, sou jornalista." A senhora pareceu igualmente confusa, dando lugar a um segurança que me exigiu a identificação e me informou de que teria de "ir lá abaixo"(à entrada do palácio) "acreditar-me". Ou seja: se tivesse respondido "sim" à senhora, poderia entrar e assistir, tirar notas se me apetecesse e até talvez fotografar com o telefone; sendo jornalista, tinha de voltar atrás e de caminho perder a cerimónia, que durou poucos minutos. A irracionalidade do postulado, que se coroou na explicação do segurança da porta - "Achei-a tão bem vestida que não pensei que fosse jornalista" é, no seu delírio, uma boa caricatura daquilo que ontem, a partir das cinco e pouco da tarde, sucedeu em Belém. Ou seja, a substituição do demissionário Vítor Gaspar pela sua secretária de Estado que no briefing do dia anterior desmentira o ministro que a desmentira a ela (sobre a passagem de informação por parte da equipa ministerial anterior sobre os swaps contratados por empresas públicas) e pouco mais de uma hora depois de a notícia da demissão do ministro dos Negócios Estrangeiros e líder do segundo partido da coligação ter dado aquilo que parecia ser o golpe de misericórdia num Executivo que a demissão de Gaspar deixara de joelhos. Mas se a ausência de Paulo Portas e dos dois outros ministros do CDS-PP - Assunção Cristas e Mota Soares - indiciariam que o seu partido estava já fora, a presença do centrista Paulo Núncio, reconduzido como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, baralhava e tornava a dar. Como, de resto, os risos largos de Passos ao cumprimentar o seu ex-ministro das Finanças cuja carta o acusa de chefiar um Governo sem coesão, ou os sorrisos entre Gaspar e a nova ministra, Maria Luís Albuquerque, suposta continuar a política que ele considerou, na missiva de demissão, ter falhado em toda a linha. Tanta boa disposição e descontração afetadas, porém, não chegaram para que a ministra das Finanças e Passos Coelho passassem pelos jornalistas concen- trados no lobby do palácio, que esperaram em vão. Estará a apresentar a demissão ao Presidente?", aventava-se. Como se viu, (ainda?) não.
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3301687&seccao=Fernanda C%E2ncio&tag=Opini%E3o - Em Foco
Quem aterrasse ontem em Portugal ficaria certamente com a convicção de que estava a subir ao palco de uma ópera-bufa. O Presidente da República confere posse a uma ministra das Finanças - que, inusitadamente, entra tão ou mais fragilizada do que o seu antecessor - de um governo em manifesto estado de decomposição. Um ministro de Estado anuncia, meia hora antes, que não consegue dissimular mais e por isso bate, irrevogavelmente, com a porta. O primeiro-ministro, pasmado e numa atitude de altruísmo para com o País, diz que não aceita, que quer evitar uma crise política - como diz? -, insinua que ainda confia em Paulo Portas - perdão? - e que quer ouvir o parceiro de coligação - agora? Da véspera sobravam ainda os estilhaços da demissão de outro ministro de Estado, Vítor Gaspar, que na carta que escreveu aos portugueses - uma vez que a quis publicitar - desafia o primeiro-ministro a assumir, também ele, as suas responsabilidades pelos falhanços sucessivos na política austeritária. Tudo isto ao segundo dia de briefing em que, pasme--se, se fez a profissão de fé na coesão e na unidade da coligação. Em Belém, ao que consta, ninguém sabia nem cuidou de saber das objeções do CDS a Maria Luís Albuquerque. Em São Bento, ninguém quis saber, reiteradamente, ao que parece, dos argumentos de Paulo Portas. E, perante toda esta tragédia, há um personagem que assiste impávido, sereno e cúmplice à exibição pública do irregular funcionamento das instituições. Há umas semanas, Cavaco Silva dizia que o País não suportaria somar uma crise política às dificuldades económicas e financeiras de que padece. Não sei em que redoma vivem o Presidente e o primeiro-ministro, mas quero dizer-lhes, caso não se tenham apercebido, que estamos em crise política, permanente e agonizante, desde 7 de setembro de 2012, o dia da TSU. Chegados aqui, qual pântano, não há modo de sair dele sem que haja eleições. Porque, como disse um ex-líder da oposição, de seu nome Pedro Passos Coelho, "não aceitaremos chantagens de estabilidade, não aceitamos o clima emocional de que quem não está caladinho não é patriota".
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3301723