quarta-feira, 13 de julho de 2016

7



Era uma porta enferrujada. E ela entrou.


O autocarro partiu e a porta atrás dela se fechou.
Carregada de sacos onde cabiam os sonhos que o mundo apagou,
Só pensava em fugir de uma vida sacrificada, na rotina de vida em que tombou.
Saiu de casa com os seus sacos mal o dia madrugou,
Regressa a casa com os seus sacos já a noite se fechou,
Sempre com os seus sacos, mais um dia que acabou.
Carrega uma vida nas pernas que o mundo desengonçou,
As mãos grosseiras, a pele acabada, de tanta casa que limpou.
Quando chega a casa ainda vai cuidar da filha que gerou,
A sopa num ápice tragou,
Enquanto a filha o peito mamou,
Mas de tão cansada nem a própria casa arrumou.
Chega o marido, traste, bêbado, canalha, bate-lhe e ela nem notou,
Mais um dia que se passou.
Deitou-se dorida e sonhou,
Sonhou com uma porta enferrujada que sobre ela se fechou
Ali, com uma pedra com o seu nome ela se deparou
E ela finalmente descansou...

6

E se fosse proibido abraçar?


João,

Esta carta não é um pedido de perdão, é uma tentativa egoísta de limpar a consciência. Bem ao meu jeito, dirás tu…

Tivemos uma relação conturbada e sei que a mim e aos meus medos se deveu.

Vivi uma vida dupla, de dia, marido e pai extremoso, à noite era um gajo que não tinha problema nenhum em ir para um qualquer quarto escuro de uma qualquer discoteca e fazer um broche a um quase perfeito desconhecido. Não te importas-te, acreditavas em finais felizes e que o amor tudo pode conquistar, nem te passava pela cabeça que existem muitos cabrões por aí e que eu poderia ser um deles.

Entraste de mansinho na minha vida com o teu jeito sossegado e discreto, com o teu sóbrio silêncio a povoar os meus dias, e os teus carinhos a aquecerem as minhas noites.

Quiseste levar a tua felicidade para o mundo, quiseste levar a nossa cumplicidade para fora das quatro paredes, e eu tive medo. Não pela minha mulher, pois acho que ela, primeiro que eu, soube das minhas preferências sexuais, mas pelo mundo. Esse mundo que via em mim um marido, um pai, o bem sucedido gestor dum banco, o gajo que joga à bola, e que bebe umas cervejas com os amigos.

E se o mundo me visse a abraçar-te em plena rua? O que diriam? Paneleiro, era o que diriam!!

Os gajos da bola com medo que eu os apreciasse no balneário, os amigos por já não poderem gozar com as bichas, e não fazer agora qualquer sentido galar as miúdas.

O mundo subjugou-me, não te deixei dar-me um simples abraço, e tudo por medo, somente medo, e agora faz-me falta o teu abraço..

quinta-feira, 16 de junho de 2016

5



O discurso de uma criança de cinco anos para o mundo

Tenho 5 anos e chamo—me Ana, e acho que tu, mundo, és um lugar triste porque estás sempre a fazer as pessoas chorarem, como a minha mãe por exemplo. Ela brinca muito comigo, e faz—me rir muito, é muito divertida, mas às vezes à noite eu ouço—a a chorar muito baixinho. Deve ter saudades do meu pai, eu também tenho muitas, a minha mãe diz que ele morreu com overdose. Eu não sei o que essa palavra quer dizer, mas acho que deve ter a ver com as picas que tinha no braço. Durante algum tempo, sempre que ia ao médico levar a vacina ficava cheia de medo de morrer, e não queria ir, mas a minha mãe disse que há picadas boas e picadas más.

No outro dia no supermercado, encontrámos a vizinha e ela estava a chorar. Disse que os homens das Finanças tinham ido lá a casa, e que ia ficar sem casa. Fiquei muito assustada, e nesse dia à noite perguntei à minha mãe se nós também íamos ficar sem casa. Ela respondeu que não, que ia fazer tudo para que isso não acontecesse, mas toda a gente aqui no bairro está assustada e triste. De vez em quando vejo as pessoas chorarem e dizerem que as Finanças lhe ficaram com a casa, com o carro ou com o ordenado. Devem ser mesmo maus e sempre que eu não quero comer a sopa, a minha mãe diz que vai chamar os homens das Finanças. Como logo tudo, tudo, nem deixo nada no prato.

Mas também acho que tens coisas bonitas, tenho muitos amigos e brincamos até anoitecer.

Mas a coisa mais bonita que tens é o sorriso e o abraço da minha mãe.




Da tua amiga, Ana.

4


Todas as frases começadas pela letra "a"


Apenas queria sentir o frio suave da arma contra a minha cabeça, e depois...Disparar!

Às vezes penso que apenas continuo viva só para te contentar.

Agarrada a um mero fino fio que há muito se quebrou,

Anestesiada pelo cheiro pútrido dos arrabaldes, pobres e miseráveis e sempre iguais a si mesmos.

A vidinha tão rotineiramente vivida,

Apegada a dias tão triviais, tão cheios de rotinas, horários e pormenores.

A vida toda, toda, contida numa simples maleta de mão…

Ali jaz toda a minha existência, todo o meu eu, numa mera mala de mão.

As horas...E as horas?

As horas que tenho de enfrentar...o amanhã e o dia depois de amanhã, e o dia depois...

A sucederem-se interminável e imutavelmente,

Aguentando esta farsa disfarçada de vida.

Ali ao canto a morte olha de volta para mim, tão pacifica, com os seus olhos abertos e respiração impercetível,

Abandono-me ao seu mortal beijo, e desta vez entrego-me a ela,

A ela, só a ela,

Abandonando-te a ti...

3/2


"Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor."

Sonho, foi aquilo que eu vivi contigo, e eu, feito camelo deitei tudo a perder…Iludido pelos nossos dias imperfeitos, saí em busca dessa perfeição inexistente, e tu fechaste a porta. Levaste as tuas roupas, as tuas lágrimas, o teu cheiro. O amor é idiota, mas o orgulho é-o ainda mais, e eu, convencido da minha razão, do alto da minha soberba, não fiz sequer um pequeno esforço para te impedir de saíres da minha vida.

Não sei se foi por altivez ou apenas por mero medo que me visses chorar, e os homens nunca choram, mas a verdade é que deixei a letargia tomar conta de mim, os pés com vontade de correrem até ti, mas as pernas teimosamente a ficarem quietas.

Por vezes penso se aquilo que sentia por ti seria amor, ou apenas uma paixão latejante, pois se de amor se tratasse, eu arrebentaria as rédeas desta vaidade incapacitante, e correria feito louco atrás de ti, não importando se os pés se embrulhassem, fazendo-me tombar nas ruas vazias, tão vazias como eu estou agora sem ti.

E agora que te perdi, e és um mero sonho, descubro-me vazio, oco, perdido, faminto de ti.

Conteitei-me com o orgulho…

O orgulho é idiota.

domingo, 29 de maio de 2016

3

"Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor."



Como a história de amor do sr. Zé e do Tobias.

O sr. Zé tinha setenta e poucos anos, e resmungava por tudo e por nada, sendo esta a sua característica mais marcante. Sempre às avessas com a vida, nunca se lhe ouvindo um obrigado, uma palavra agradável ou um mero sorriso.

Comprava diariamente o jornal, indo sentar-se no jardim a ler as últimas noticias, e foi neste local que decorreu o encontro entre o sr. Zé e o Tobias. Um belo dia estando a ler o jornal, o velho sentiu algo a roçar nas pernas. Baixando os olhos deu de caras com um gatito, negro como a noite, enfezado e sujo, a emitir leves miados. O sr. Zé afastou com a perna o bichano, mas este teimava em roçar-se nele; depois de algumas tentativas infrutíferas para afastar o animal, o idoso levantou-se incomodado, repetindo-se este episódio nos três dias seguintes. Nessa noite, o termómetro desceu, com a chuva e o vento a fustigar as ruas, e sem saber porquê o sr. Zé deu por si a pensar naquele bichano enfezado ao frio e relento. Nas suas idas ao jardim esperou pelo animal até que o sol se pôs, e quando o gato não apareceu, o seu coração apertou-se. Ao terceiro dia, já sem esperanças, sentou-se no banco do jardim, ouvindo um miado fraquinho. O seu coração deu um salto, era o gato preto. O sr. Zé correru até à mercearia buscar leite e um pouco de comida, até obrigado disse, e foi a correr alimentar o bicharoco, levando-o para casa.

Um mês depois o sr. Zé passeava alegremente pela rua, cumprimentando quem passasse por ele, com um sorriso nos lábios, e um gato preto de pêlo luzidio e bem tratado atrás dele.

"Vamos Tobias" disse "Vamos passear no jardim".

2

"A casa é sempre o centro e o sentido do mundo. A partir daí, da casa, percebe-se tudo. Tudo. O mundo todo."


O mundo intoxicante e asfixiante, onde perco os sentidos, o cheiro a bolor a penetrar nas minhas narinas, fazendo confundir norte e sul, este e oeste.

Fujo, cambaleando, deste cheiro que teima em se impregnar nas minhas roupas, essa presença ubíqua a estalar na minha cabeça, fechando as suas garras sobre o meu pescoço dificultando a passagem de ar; o sangue a latejar cada vez mais forte na minha cabeça.

Grito!
Corro desvairada pelo solo pejado de enxofre e de corpos caídos em guerras perpétuas e mesquinhas.

Fujo para a segurança insegura da minha casa, essa casa tão velha e decadente como eu, onde ainda ontem arranjei o soalho e hoje mais uma janela que cai.

Caio sobre a poltrona, cansada e desanimada, com o peso do mundo sobre o meu esqueleto caquético.

Sinto os sentidos abandonarem-me, o corpo a desistir de perceber esse mundo cão.

Estou quase a adormecer…

Amanhã arranjo a janela.

1

Um avô escreve um texto ao seu neto, acabado de nascer:

Querido neto:
Fodi a tua mãe!
Eis a minha infâmia nua e crua…
Fodi a tua mãe,
Esfaqueei-lhe os sonhos e a vontade...


Fodi a tua mãe,
Quis que ela somente respirasse nada mais do que a mediocridade,
Que ela vivesse apenas a passagem interminável dos dias monotonamente iguais.

Fodi a tua mãe,
Reduzi-a a material de limpeza,
A ser companhia da pá, da vassoura e da esfregona
E mesmo estes objetos sentimos-lhes a ausência quando nos faltam.


A tua mãe tornou-se meramente a mulher a dias.
Desgrenhada, invisível, a valer tanto como um grão de pó,
E mesmo assim eu fodi-a,
Prendendo-a aos grilhões da servidão humana.

Espero que me perdoes por ser nada mais do que um velho tonto,
Por ser cobarde,
Por negar a liberdade a uma ave.
Egoísta, quis tê-la só para mim,
Não a quis partilhar om o mundo,
Mas o mundo encarregou-se de a roubar de mim.

Fodi a tua mãe…
Reduzi-a a nada,
E mesmo assim ela deu-me tudo.
Deu-me o mundo, deu-me a ti.

This used to be my playground